A história da Igreja Cristã, se corretamente considerada e usada, pode ser uma grande fonte de força, sabedoria e estabilidade para o cristão sério. Por outro lado, a história da Igreja, quando considerada erroneamente e usada de maneira equivocada, pode ser uma pedra de tropeço, uma ocasião de fraqueza e estagnação. Há três atitudes para com a história passada da Igreja que são erradas e que podem somente impedir a força verdadeira e o progresso no testemunho da Verdade. Essas três atitudes são: [1] Romantizando o passado; [2] Absolutizando o passado; e [3] Desdenhando o passado. Consideremos cada uma delas.
1. Romantizando o Passado
Romantizar o passado significa dar-lhe,
em nosso pensamento, uma qualidade ideal ou perfeita que de fato ele não
possui. Frequentemente isso envolve o anacronismo de ler o presente no
passado, em vez de ver o passado e interpretá-lo como aquilo que ele
realmente foi.
Dois exemplos dessa tendência vêm à
mente. O primeiro consiste em romantizar a antiga Igreja Britânica ou
Céltica — os primeiros séculos do cristianismo na Inglaterra e Irlanda —
antes da invasão Anglo-Saxã da Inglaterra e antes do domínio do
romanismo. Que a Antiga Igreja Britânica ou Cética era naqueles tempos
tão pura quanto qualquer parte do mundo cristão, ou até mesmo mais pura
que todas as outras, não questionamos. Mas a tentativa de alguns autores
retratarem a Antiga Igreja Britânica como essencialmente calvinista na
doutrina e presbiteriana na forma de governo, e em cima disso sustentar
que ela preservou em alguns lugares uma continuidade ininterrupta da
vida corporativa até a Reforma Protestante, ao longo de mil anos da
Idade Média, só pode ser considerado como uma romantização da história
sem fundamento.
Similarmente, o movimento valdense do
norte da Itália tem sido romantizado, nem tanto pelos valdenses em si,
mas pelos escritores em países de fala inglesa. A alegação que os
valdenses tinham uma vida corporativa distinta quase similar, se não
totalmente, ao período apostólico, e continuando claramente ao longo da
Idade Média até os tempos de Martinho Lutero e a Reforma, e que durante
esse longo período de quase um milênio e meio eles foram sempre
distintos do catolicismo romano, é impossível de sustentar por evidência
histórica válida. Antes, a evidência real indica que o movimento
valdense originou-se no século 12, aproximadamente 400 anos antes de
Martinho Lutero e a Reforma Protestante. Além disso, os valdenses não
eram evangélicos ou protestantes no sentido apropriado desses termos. É
possível — ou até mesmo provável — que eles acreditavam no sacerdócio
universal dos crentes. É verdade que eles se opunham a alguns dos abusos
e pretensões mais sérias da Igreja de Roma. Mas eles não sustentavam a
ênfase e o cerne real do Protestantismo — a doutrina da justificação
pela fé somente — de nenhuma maneira consistente ou apropriada, até que
aprenderam-na com a Reforma Luterana no século 16. É ainda mais
anti-histórico tentar manter que os valdenses medievais eram calvinistas
e presbiterianos antes da Reforma. Que eles foram testemunhas notáveis e
fieis da verdade de Deus não pode ser negado, e deveríamos honrar a sua
memória por isso. Mas é uma romantização imprópria da história
considerar esses santos como virtualmente calvinistas e presbiterianos
numa Itália e França medieval.
2. Absolutizando o Passado
Absolutizar o passado significa
considerar alguma época ou período no passado como ideal e normativo
para todos os tempos vindouros. O tempo logo após a morte dos apóstolos,
ou o tempo dos grandes Concílios da Igreja Primitiva, ou o tempo de
Lutero, Knox e Calvino, ou o tempo da Segunda Reforma e a Assembleia de
Westminster, são nostalgicamente considerados como “os velhos e bons
dias” e a ideia mantida é a seguinte: que aquilo que a Igreja de nossos
dias realmente precisa é voltar em espírito àqueles tempos e ali
permanecer. Essa tendência surge de uma falta de perspectiva histórica,
frequentemente combinada com um grau considerável de ignorância
histórica, e uma falha em reconhecer a imperfeição e o relativismo de
todas as realizações humanas, mesmo das melhores e mais nobres feitas em
submissão a Deus.
Um exemplo dessa tendência é a noção não
incomum de que os credos ou padrões oficiais de uma igreja são
sacrossantos e que é algo errado e ímpio procurar alterá-los em algum
detalhe, ou mesmo reexaminá-los à luz da Escritura. Essa absolutização
do passado conflita inevitavelmente com a autoridade da Escritura como o
padrão absoluto de fé e prática. Se há alguns elementos ou fases da
história passada da Igreja que devem ser considerados como isentos do
julgamento da Escritura, então a Bíblia não é mais a nossa única regra
infalível de fé e prática. Se a Escritura é realmente a única regra
infalível de fé e prática, então tudo na história da Igreja desde que o
Novo Testamento foi finalizado está sujeito ao julgamento de Deus
falando na Escritura. Deixamos de honrar a Confissão de Westminster se,
por exemplo, atribuímos a ela uma autoridade que pertence somente à
Escritura, e assim considerá-la e tratá-la como se fosse infalível. Mas a
pessoa que considera ímpio ou profano dizer que tal credo pode ser
alterado, sobre a base de um estudo adicional da Bíblia, está tratando
esse credo como infalível e dando-lhe uma posição que pertence somente à
Palavra de Deus. O presente escritor considera a Confissão de Fé de
Westminster a melhor declaração da verdade cristã em forma de credo que
já foi formulada. Mas ela não é a Palavra de Deus, e assim não é
infalível. Ela foi composta por homens que eram de fato eruditos e
piedosos, mas ainda sim falíveis em si mesmos e capazes de erro.
E, novamente, quando as pessoas
consideram a Reforma como uma conquista fixa e consumada de uma vez por
todas, elas estão absolutizando a história. A Reforma Protestante foi
parte de um processo histórico.“Ecclesia reformata reformanda est”— a
Igreja, tendo sido reformado, continua sendo reformada. Como a
santificação, a reforma da Igreja é um processo sem nenhum ponto final
na história.
3. Desdenhando o Passado
Desdenhar ou desprezar o passado é uma
reação contra as tendências de romantização e absolutização. A pessoa
que desdenha o passado falha em apreciar suas conquistas e valores
reais. Isto é, ele fracassa em perceber o que Deus já fez na história
passada de sua Igreja.
Alguém disse que “Ninguém jamais
aprendeu algo da história exceto que ninguém aprende algo da história”.
Em grande medida, vivemos numa era que superestima o presente e despreza
o passado. Alguns podem dificilmente mencionar os covenanters
escoceses do século 17 e suas lutas sem um sorriso de escárnio. As
testemunhas e os mártires recebem um elogio parco por uma atitude que
diz, em efeito, “Os covenanters foram importantes sem dúvida, mas…”
Todo verdadeiro progresso está
construindo sobre fundamentos lançados no passado. Somente captando e
apreciando o passado podemos ter uma atitude verdadeiramente válida para
com o presente, e somente assim podemos construir um futuro sólido. A
pessoa que diz “História é bobagem” está desonrando a Deus, que por sua
obra de criação e providência fez a história aquilo que ela é.
Em nossos dias esse grande monumento
histórico da Fé Reformada — a Confissão de Fé de Westminster — foi posto
de lado como uma peça de museu por grande parte do corpo presbiteriano
na América, e uma “nova confissão” a substituiu como o padrão
denominacional realmente em vigor. E essa “nova confissão” é na verdade
uma rejeição de grande parte da verdade alcançada e testemunhada na
Confissão de Westminster histórica. Isso é verdadeiramente um desdenhar
da história.
Não é incomum encontrar pessoas com uma atitude de desdém para com os covenanters escoceses históricos e os antigos pactos escoceses. Não fomos salvos pela história dos covenanters,
mas sim pela fé em Jesus Cristo. Mas deixamos de honrar ao Senhor se
desprezamos o que ele fez em e por meio do seu povo nos tempos passados.
A atitude desdenhosa tem suas raízes no
orgulho — o orgulho da ignorância. Alguém disse que há três tipos de
orgulho: orgulho de raça, orgulho de rosto e orgulho de graça,** e esse
orgulho de graça é o pior dos três. Mas sem dúvida podemos classificar
com esses o orgulho da ignorância como uma das piores formas de orgulho.
Há pessoas que de fato se gloriam em sua vergonha, que se orgulham
verdadeiramente de que são ignorantes de teologia e história da igreja.
Não somos os primeiros cristãos
inteligentes ou fieis que já viveram. Cristo, por meio do seu Espírito,
sempre esteve ativo, trabalhando ao longo da história passada de sua
Igreja. Prestemos atenção à injunção bíblica de “provar todas as coisas e
reter o que é bom”. Não romantizemos o passado, não absolutizemos o
passado e não desprezemos o passado. Antes, que possamos avaliá-lo com
justiça e valorizá-lo sabiamente, para a honra e glória de Deus.
NOTAS:
* Covenanters: Os membros da Igreja da Escócia que assinaram o Pacto (Covenant)
Nacional Escocês de 1638, que os obrigava a manter a Igreja da Escócia
como foi organizada durante a Reforma, isto é, presbiteriana. Eles
participaram em combate armado em obediência ao pacto assinado.
** O autor usa um jogo de palavras aqui: race, face, grace.
Escrito por: J. G. Vos
Retirado de: monergismo.com
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